O futuro da onça-pintada parece cada vez mais incerto à medida que o agronegócio avança com a criação de gado e destrói florestas brasileiras
- O agronegócio, especialmente a pecuária, está acelerando a perda de biodiversidade no Brasil, ameaçando espécies como a onça-pintada e prejudicando metas climáticas globais.
- Uma análise da Global Witness revela que mais de 27 milhões de hectares do habitat original da onça-pintada no Brasil foram transformados em terras agrícolas, uma área maior do que o Reino Unido.
- Em 10 anos, um único fornecedor da maior processadora de proteína animal do mundo, a JBS, destruiu mais de 1.200 hectares de habitat da onça-pintada em uma área protegida no Brasil.
- A maior parte dos fornecedores da JBS presentes no território da onça-pintada em dois estados brasileiros infringiu as leis ambientais nos últimos cinco anos.
- Com a COP30 sendo realizada no Brasil, os líderes mundiais enfrentam o desafio de implementar regras na cadeia de suprimentos que garantam a proteção de pessoas e natureza, além de responsabilizar as instituições financeiras. Caso contrário, correm o risco de não atingir o objetivo de eliminar a perda de florestas até 2030.
Onças x gado: a perda de biodiversidade à sombra da JBS
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As onças-pintadas estão perdendo a luta para o agronegócio. Gerald Corsi / Getty Images
Em uma batalha entre uma onça e uma vaca, quem você acha que venceria? Se você apostou no predador mais poderoso da América do Sul, você errou.
Enquanto o agronegócio avança com a pecuária e destrói florestas brasileiras, ele também ameaça as onças-pintadas, uma espécie fundamental para a biodiversidade e a estabilidade climática.
Esta nova investigação revela que a JBS, a maior processadora de proteína animal do mundo, é uma das responsáveis por essa crise.
De 2013 a 2023, um único fornecedor da JBS derrubou mais de 1.200 hectares de floresta no habitat da onça-pintada em uma área protegida no Brasil.
Mas a cadeia de suprimentos da empresa está destruindo especialmente os territórios das onças-pintadas em dois estados: Pará e Mato Grosso.
Nesses dois estados, uma análise das fazendas situadas no território da onça-pintada demonstrou que 75% das propriedades rurais identificadas pela Global Witness como parte da cadeia de fornecedores da JBS aparentaram violar as leis ambientais do Brasil entre 2018 e 2023.
As onças-pintadas estão perdendo a luta para o agronegócio
Como predadores do topo da cadeia, as onças-pintadas desempenham um papel crucial na manutenção de ecossistemas saudáveis, controlando doenças e impedindo que as populações de certas espécies cresçam demais e perturbem a cadeia alimentar.
No Brasil, o quadro geral é de uma agropecuária que se alimenta de habitats selvagens, com pesquisas recentes sugerindo que as onças evitam áreas de fazenda em seu território.
Uma análise da Global Witness revela que mais de 27 milhões de hectares do habitat original da onça-pintada, uma área maior do que o Reino Unido, foram convertidos em terras agrícolas nos estados de Mato Grosso e Pará até 2023.

A falta de dados históricos nos dificulta saber exatamente quando ocorreu toda essa transformação das terras. No entanto, as taxas de desmatamento no Brasil continuaram altíssimas na última década, apesar de algumas recentes reduções .
Para calcular a expansão agrícola recente e a perda de florestas no território da onça-pintada, a Global Witness analisou dados de 2014 a 2023 da organização sem fins lucrativos MapBiomas, que monitora as mudanças no uso da terra no Brasil desde 1985.
As onças-pintadas são uma espécie-chave. Quando seus territórios são destruídos, todo o ecossistema é prejudicado
Entre 2014 e 2023, a Global Witness identificou mais de 5 milhões de hectares destruídos no território da onça-pintada nos dois estados, 89% deles sem as autorizações necessárias.
No mesmo período, as terras agrícolas no território da onça-pintada expandiram-se em mais de 5 milhões de hectares.
Embora algumas dessas áreas desmatadas se sobreponham, não há certeza de que todas essas novas terras agrícolas eram anteriormente florestas.
O desmatamento provocado pela expansão do agronegócio e o frágil monitoramento da cadeia de suprimentos estão acelerando a perda de biodiversidade. Essa destruição leva à extinção de espécies como a onça-pintada e prejudica as metas climáticas globais.

Gado pastando em áreas desmatadas no Pará, um dos estados com território de onças-pintadas analisado pela Global Witness. Global Witness
“Resolvemos investigar a perda do habitat das onças-pintadas provocada pelo agronegócio porque se trata de uma espécie-chave. Elas têm um papel fundamental na estabilização dos ecossistemas e na manutenção da biodiversidade em áreas como a Amazônia e o Cerrado. Quando seus territórios são destruídos, todo o ecossistema é prejudicado”, disse Marco Mantovani, pesquisador da Global Witness que conduziu a análise dos dados.
Especialistas alertam que a extinção de predadores de topo da cadeia, como a onça-pintada poderia desencadear efeitos catastróficos, levando à extinção de espécies vegetais e animais.

As populações de onças-pintadas estão em declínio, com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) classificando esse felino como "Quase Ameaçado". James Keith / Global Witness
A onça-pintada tem um valor simbólico profundo em muitas culturas nativas latino-americanas, personificando a força da natureza e servindo como guardiã da floresta tropical. No entanto, hoje elas vivem em trechos fragmentados de floresta entre o México e a Argentina, em áreas que correspondem a apenas metade do seu território original.
No Brasil, a espécie encontra-se ameaçada e já foi praticamente exterminada em algumas áreas, incluindo na Mata Atlântica e na Caatinga.
As populações de onças-pintadas estão em queda, com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) classificando o grande felino como Quase Ameaçado em sua Lista Vermelha de biodiversidade. Estima-se que 1.422 onças-pintadas foram mortas ou expulsas da Amazônia brasileira entre 2016 e 2019, de acordo com um estudo de 2021 da revista Conservation and Science Practice.
Giulia Bondi, ativista sênior da Global Witness na UE, disse: “Os tomadores de decisão da União Europeia e de outros países devem parar de recuar em relação às leis necessárias para acabar com a perda de florestas até a COP30. Os governos se comprometeram a interromper toda a destruição florestal até o final da década, o que significa que eles precisam agir rapidamente para adotar novas leis que cortem linhas de crédito de empresas irresponsáveis que alimentam essa crise."
Um infrator reincidente na cadeia de suprimentos da JBS
Para descobrir as relações entre a agricultura, o desmatamento e a perda de habitat, a Global Witness passou a investigar as cadeias de suprimentos das empresas.
Uma fazenda que a Global Witness identificou como fornecedora da JBS, a fazenda Canoeiro, em Cocalinho, no estado do Mato Grosso, foi multada em quase US$ 576.000 (R$ 3,35 milhões) pelo desmatamento ou dano ilegal de florestas e outras atividades relacionadas. O proprietário da fazenda desde 2024, a MFX Investimentos e Participações, é uma empresa de investimentos com sede no estado de Goiás.
Uma análise feita pela Global Witness constatou que a fazenda desmatou mais de 1.200 hectares de território protegido da onça-pintada entre 2013 e 2023 em uma área chamada APA Meandros do Araguaia – um refúgio ecológico único para animais selvagens como onças-pintadas, veados, pássaros, tartarugas e outras espécies.
A reserva está localizada em uma mistura de floresta e savanas entre os estados de Mato Grosso, Goiás e Tocantins. O desmatamento não autorizado e as queimadas nessa área são ilegais.

Gado observado pastando em terras embargadas na Fazenda Cocalinho, de acordo com uma multa ambiental de 2015 emitida pelo ICMBio e acessada pela Global Witness. ICMBio / Global Witness
Apesar de ter recebido várias multas e embargos entre 2013 e 2022, a fazenda recebeu outra multa por continuar a desmatar a floresta em 2023.
Documentos analisados pela Global Witness revelam que os animais criados nessa fazenda foram transferidos para uma propriedade vizinha pertencente aos mesmos indivíduos. De lá, foram vendidos para outras fazendas, que abasteceram os frigoríficos da JBS em duas ocasiões entre 2019 e 2022.
Entramos em contato com a MFX para comentar, mas ela não respondeu. A JBS disse em um comunicado que apenas uma das fazendas identificadas pela Global Witness como compradoras da MFX ainda faz parte de sua lista de fornecedores, e que a outra era anteriormente fornecedora, mas desde então foi bloqueada pela empresa.
A transferência de gado criado em terras desmatadas para fazendas “limpas” é conhecida como “lavagem de gado”. Essa é uma das maneiras pelas quais os produtos pecuários ligados ao desmatamento podem entrar no mercado, explorando uma brecha nos sistemas de monitoramento da JBS, que rastreiam principalmente os fornecedores diretos, deixando de lado os indiretos mais adiante na cadeia de suprimentos.
Um problema sistêmico
A JBS já foi implicada várias vezes antes em alegações semelhantes de lavagem de gado.
Uma investigação realizada em 2024 pela Global Witness com o Centro de Análise de Crimes Climáticos (CCCA) e a Profundo revelou que, no período de 2018 a 2023, cerca de 8.000 bovinos criados ilegalmente no território indígena brasileiro dos Apyterewa entraram na cadeia de suprimentos da JBS, provavelmente por meio de um esquema de lavagem de gado.
O banco britânico Barclays ganhou US$ 1,7 bilhão com o financiamento da JBS durante esse período, superando mais de 30 outras instituições financeiras globais que financiaram o frigorífico.

Fogo visto em 2024 pela Global Witness dentro do território indígena Apyterewa, no estado do Pará. Gado criado ilegalmente dentro da TI acabou entrando na cadeia de fornecimento da JBS. Cicero Pedrosa Neto / Global Witness
A frequente falha da JBS em monitorar adequadamente seus fornecedores indiretos mostra por que ainda são necessárias leis fortes para manter o desmatamento fora das cadeias de suprimentos.
A compra de gado de fazendas onde há desmatamento, mesmo que indiretamente, viola os compromissos ambientais da JBS.
Além dessa cadeia de suprimentos única, a Global Witness analisou guias de transporte animal para mapear a cadeia de suprimentos direta da JBS entre 2018 e 2023 nos estados do Pará e Mato Grosso. As propriedades que coincidiram com o território da onça-pintada foram identificadas, e os dados foram cruzados com os registros de propriedade disponíveis no Cadastro Ambiental Rural (SICAR) do governo.
Esses dados oficiais mostram que 75% das fazendas localizadas no habitat da onça-pintada que a Global Witness identificou como pertencentes à cadeia de suprimentos da JBS tinham menos florestas remanescentes em suas propriedades do que o legalmente exigido pela legislação brasileira.
A JBS se comprometeu a erradicar o desmatamento ilegal de sua cadeia de suprimentos na Amazônia, incluindo os fornecedores indiretos, até 2025, e em outros biomas brasileiros até 2030.
A empresa também prometeu zerar suas emissões até 2040. No entanto, no início de 2025, seu diretor global de sustentabilidade, Jason Weller disse que a meta era meramente uma “aspiração”, alegando que “nunca foi uma promessa de que a JBS faria isso acontecer.”
A JBS refutou categoricamente as conclusões gerais da análise da Global Witness de dados e documentos oficiais que foram enviados à empresa e discutidos em detalhes.

Escritório da JBS em São Paulo, Brasil. Sala de Imprensa JBS
Em uma declaração enviada por e-mail, a JBS disse à Global Witness que o valor de 75% “é claramente exagerado”, que muitas das fazendas analisadas não faziam parte de sua “lista de fornecedores” e que os números analisados foram extraídos de uma “amostra limitada”. Até o momento em que este artigo foi escrito, a empresa não havia fornecido à Global Witness nenhuma evidência que comprovasse suas declarações, apesar de várias solicitações.
A JBS disse que cumpre as leis, acordos e políticas brasileiras que regem as cadeias de suprimentos de gado, incluindo o protocolo “Beef on Track” desenvolvido pelo Ministério Público brasileiro como o “protocolo padrão para a compra de gado no Brasil”. Ela também disse que sua fazenda fornecedora com vínculos comerciais com a MFX está em conformidade com as mesmas leis, acordos e políticas.
A empresa declarou que está “empenhada em zerar o desmatamento ilegal em toda a sua cadeia de suprimentos de gado em todos os biomas brasileiros onde opera até 2025” e que “essa meta é essencial e deve ser ampliada”.
Por que a COP30 deve enfrentar o desmatamento causado pelo agronegócio?

Belém, Pará: um portal para a Amazônia e o palco da COP30 – no ponto de encontro entre natureza e negociação. Ricardo Lima / Getty Images
O Brasil vai sediar a COP30, a cúpula climática da ONU, no Pará, em novembro deste ano. Lá, os líderes serão encarregados de mostrar como implementarão a Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra para deter e reverter a perda de florestas até 2030.
Organizações ambientais, incluindo a Global Witness, afirmam que os líderes precisam chegar à COP30 com planos claros para atingir suas metas de desmatamento, garantir que os defensores das florestas sejam incluídos nas negociações climáticas e assegurar que as ações de biodiversidade sejam contempladas.
Sem regras mais rígidas para a cadeia de suprimentos e finanças, respaldadas por penalidades severas, as empresas que desmatam podem levar espécies icônicas como a onça-pintada à extinção.
A Global Witness está em campanha para que os principais centros financeiros e de consumo adotem uma legislação que concilie a economia global com a proteção das florestas e os direitos das comunidades locais.
Reid acrescentou: “Não podemos esquecer que as instituições financeiras ainda estão lucrando com o apoio à JBS. Estamos convocando bancos e gestores de ativos sediados no Reino Unido, nos EUA, na China e na UE a adotarem regras efetivas para garantir que seus investimentos não financiem a destruição das florestas.”
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