Gigantes financeiros, como Barclays, Vanguard e BlackRock, lucraram milhões ao financiar a processadora de carne brasileira JBS, cuja atuação está impulsionando a destruição do território indígena Apyterewa 

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Um menino Parakanã observa a carcaça de uma cobra queimada, no estado do Pará. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

O banco britânico Barclays ganhou US$ 1,7 bilhão ao financiar o gigante da carne brasileira JBS nos últimos cinco anos, enquanto as operações da empresa contribuíram para a invasão e destruição de um território indígena no Brasil, como revelou uma investigação liderada pela organização climática Global Witness.

O Barclays emergiu como o maior credor das operações globais da JBS, gerando a maior renda gerada a partir de empréstimos e taxas de subscrição entre mais de 30 outros financiadores identificados pelo grupo de pesquisa independente Profundo.  

O papel da JBS no desmatamento ilegal 

A pecuária comercial por pessoas não indígenas é ilegal em territórios indígenas, de acordo com as leis brasileiras.

No entanto, entre 2018 e 2023, quase 8.000 cabeças de gado criadas dentro do território indígena  Apyterewa entraram na cadeia de fornecimento da JBS, de acordo com uma análise do Centro de Análise de Crimes Climáticos (CCCA).

A JBS não respondeu ao nosso pedido de comentário.

O território Apyterewa, onde vive o povo Parakanã, no estado do Pará, viu mais desmatamento do que qualquer outro território indígena nos últimos anos na Amazônia brasileira.

Apesar das proteções legais, criadores de gado continuam a invadir essas terras, explorando o apetite global por carne e desconsiderando os direitos dessas comunidades. 

Em outubro de 2023, o governo brasileiro despejou esses invasores das terras, mas um recente sobrevoo da Global Witness revelou incêndios ativos, indicando que tanto o desmatamento quanto as invasões continuam.

A Amazônia enfrenta a pior temporada de incêndios em duas décadas em meio a uma grave seca, e a destruição da Apyterewa está se intensificando. Isso ocorre porque os incêndios na floresta são, na maioria, provocados por atividade humana, especialmente por grileiros. Dados doInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) confirmaram mais de 300 alertas de incêndio desde o início deste ano dentro do território, demonstrando a persistente ameaça. 

O custo ambiental e humano

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Mama Parakanã, cacique da aldeia Apyterewa e liderança contra as invasões do território. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

Eles destruíram tudo. Tudo oque nos resta é grama. Nossos animais queimaram até a morte - Mama Parakanã, cacique da aldeia Indígena Apyterewa

Na TI Apyterewa, a destruição ambiental caminha lado a lado com a violência. Um líder Parakanã descreveu como sua aldeia foi queimada em um ataque de grileiros, enquanto outro membro da comunidade relatou ter sido alvo de tiros por um invasor. 

“A carne da terra indígena Apyterewa é carne do nosso território,” disse Mama Parakanã, cacique da Aldeia Indígena Apyterewa. “Eles destruíram tudo. Tudo o que nos resta é grama. Nossos animais queimaram até a morte.”

Falta de supervisão das instituições financeiras

A investigação da Global Witness expõe falhas significativas tanto da indústria da carne quanto no setor financeiro internacional. A primeira enfrenta dificuldades em monitorar cadeias de suprimento, enquanto a segunda muitas vezes negligencia medidas para mitigar os impactos ambientais e sociais de seus investimentos.

“Essas descobertas revelam como um acordo aparentemente rotineiro feito em Nova York ou Londres pode estar ligado à invasão evitável, mas devastadora, de terras indígenas”, disse Alexandria Reid, líder de Estratégia da Campanha da Global Witness. 

“Não há como frear a perda de biodiversidade e a mudança climática sem que os governos tomem medidas para impedir o desmatamento, que é facilmente alcançado garantindo os direitos e a soberania dos povos indígenas sobre seus territórios”, acrescentou.

Não há como frear a perda de biodiversidade e a mudança climática sem que os governos tomem medidas para impedir o desmatamento - Alexandria Reid, líder de Estratégia de Campanha para Florestas da Global Witness

O Barclays negou ter fornecido financiamento para as operações da JBS no Brasil desde 2021, acrescentando que suas políticas foram “atualizadas em abril de 2023 para incluir restrições à produção de carne e ao processamento primário em países de alto risco de desmatamento na América do Sul”.

No entanto, o banco não comentou sobre seu financiamento das operações globais da empresa, por “razões de confidencialidade”. Para saber mais detalhes sobre as respostas da empresa a essas alegações, acesse

Apesar de ter adotado regras de financiamento mais rigorosas para empresas que desmatam no ano passado, os vínculos do Barclays com a JBS persistem, já que uma brecha na política do banco permite que continue a financiar as subsidiárias da empresa, inclusive nos EUA.

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Focos de incêndios na Terra Indígena Apyterewa, no estado do Pará, julho de 2024. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

Demanda global por carne e conflitos fundiários

A demanda global por carne tem levado a um avanço generalizado do desmatamento particularmente no Brasil. A maior parte da vegetação perdida dá espaço para pastagens de gado ilegal, com pecuaristas invadindo terras protegidas, incluindo parques nacionais e territórios indígenas. 

Um estudo de 2023 na revista Nature revelou que o desmatamento dentro de territórios indígenas na Amazônia aumentou em 129% desde 2013.

A terra indígena Apyterewa está no centro dessa crise. 

Sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022, tanto as taxas de desmatamento quanto as ameaças à segurança da comunidade e aos meios de subsistência tradicionais dispararam.

De acordo com estimativas do governo brasileiro, cerca de 2,5 mil indígenas estão distribuídos em 51 aldeias no território – principalmente das comunidades Parakanã, Mebengôkre Kayapó e Xikrim.

Enquanto isso, grupos indígenas afirmam que, quando a invasão atingiu seu pico, havia aproximadamente 10 mil não indígenas ocupando a terra.

O povo Parakanã diz que os invasores estão poluindo suas fontes de água, acabando com os recursos florestais e ameaçando seu modo de vida tradicional.

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Tatuaro Parakanã, cacique da aldeia Caeté,  diz que tem enfrentado ameaças de morte de grileiros. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

Onde caçávamos, onde coletávamos nozes... os grileiros derrubaram tudo - Tatuaro Parakanã, cacique da aldeia Caeté

Tatuaro Parakanã, chefe da aldeia Caeté, recontou a devastação causada pela limpeza de terras: 

“Onde caçávamos, onde coletávamos nozes... os grileiros derrubaram tudo”, disse ele, citando ameaças de morte persistentes.

No ano passado, ele teve que se mudar com várias famílias por questões de segurança, apenas para encontrar sua casa reduzida a cinzas mais tarde. “Tudo o que queremos é voltar para casa”, acrescentou.

O ponto cego com fornecedores indiretos

Esta nova análise do CCCA revela que, entre 2018 e 2023, 7.795 cabeças de gado abatidos pela JBS vieram de cadeias de suprimentos que incluem fazendas localizadas na Apyterewa. 

Desse total, o CCCA calcula que 561 foram adquiridas pela JBS diretamente de fazendas ilegais dentro do território Apyterewa – enquanto a maioria, 7.234 animais, estão ligados à cadeia de suprimentos indireta da JBS. 

O CCCA identificou essas transações da cadeia de suprimentos usando um algoritmo que incorpora uma análise em múltiplos níveis de informações extraídas das guias de trânsito animal (GTAs) que documentam as transferências de gado entre propriedades, incluindo aquelas que têm relação comercial com a JBS.

Esses animais são provavelmente "lavados" na cadeia de suprimentos da processadora de carne, com fazendeiros transferindo gado de propriedades ilegais dentro do território indígena para outras aparentemente "limpas", ou sem perda recente de floresta ou conexão com a grilagem original.

Fornecedores indiretos representam um ponto cego significativo na luta contra o desmatamento. Um estudo recente da ONG Mighty Earth mostrou que, entre 2017 e 2022, os fornecedores indiretos representaram a maior parte do desmatamento ligado a grandes processadores de carne. 

A nova análise do CCCA revelou que outros dois gigantes da indústria da carne – Marfrig e Minerva – também adquiriram gado da TI Apyterewa.

De acordo com esta investigação, a Marfrig recebeu 94 animais diretamente de fazendas ilegais e esteve ligada a mais 2.691 cabeças de gado através de sua cadeia de suprimentos indireta, enquanto a Minerva estava associada a 277 animais criados na Apyterewa.

Ambas negaram ter comprado vacas de propriedades localizadas em terras indígenas. 

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Uma aldeia dos Parakanã, na Terra Indígena Apyterewa, Pará, Brasil. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

A Marfrig acrescentou que monitora todos os seus fornecedores diretos e 87% de seus fornecedores indiretos na Amazônia. 

A Minerva disse que não tinha relações diretas com nenhuma das fazendas que se sobrepõem ao território indígena Apterewa, e que ficava a 88,6 km do raio de comercialização de 300 km do matadouro de Araguaína da Minerva. 

No entanto, ela também observou que os dados fornecidos pela Global Witness não eram suficientes para conduzir uma “avaliação mais detalhada das vendas indiretas fornecidas”. 

Para saber mais detalhes sobre as respostas da empresa a essas alegações, acesse.

Durante o período de cinco anos da análise, o CCCA averiguou que, além desses três maiores frigoríficos, 37 outras empresas tinham conexões com a TI Apyterewa. No total, 14.217 animais criados em fazendas ilegais no território Apyterewa parecem ter chegado a esses frigoríficos. 

Todos os grandes processadores de carne mencionados – JBS, Marfrig e Minerva – assinaram um acordo com o Ministério Público Federal em 2009 para parar de comprar gado de fazendas envolvidas em desmatamento ilegal, ou localizadas em áreas protegidas ou em territórios indígenas.

“Essas empresas se beneficiam da compra de carne de uma fonte ilegal, o que a torna mais barata.” - Leonardo Godoy, Diretor Interino do Programa Brasil do CCCA

Em 2022, a JBS se comprometeu a monitorar a origem de todo o gado de seus fornecedores da Amazônia e do Cerrado até 2025. Para o restante do mundo, a empresa disse que suas cadeias de suprimentos não serão totalmente monitoradas até 2030.

As descobertas apontam para um problema sistêmico de dois níveis que prejudica aqueles que estão na linha de frente da luta contra o desmatamento na Amazônia, aponta Leonardo Godoy, Diretor Executivo do Programa Brasil do CCCA:   

“Essas empresas [JBS, Marfrig e Minerva] se beneficiam da compra de carne de uma fonte ilegal, o que a torna mais barata.” 

Além disso, existem gigantes financeiros que simplesmente falham em “impor medidas regulatórias efetivas para garantir que não invistam em empresas que ameaçam o meio ambiente e os direitos humanos, [e que] lucram extensivamente com os empréstimos oferecidos a essas empresas”.

Lucros antes, planeta depois

A venda de carne bovina é um negócio lucrativo. De acordo com a coalizão de ONGs Forests & Finance, bancos financiaram com mais de US$ 260 bilhões empresas de agronegócio que impulsionam o desmatamento de florestas tropicais entre 2018 e 2023. 

A JBS, o maior compradora de gado de Apyterewa, tem diversos financiadores internacionais. 

A Global Witness e o grupo de pesquisa Profundo analisaram os laços de investimento e de crédito entre a JBS e essas instituições durante as invasões de terras em Apyterewa. 

A análise realizada pela Profundo com dados do Refinitiv Eikon e Bloomberg revelou que instituições financeiras, incluindo Barclays, Royal Bank of Canada, Rabobank e Santander geraram, coletivamente, bilhões de dólares em receita com empréstimos e serviços de subscrição para as operações globais da JBS durante aqueles anos.

Embora seu financiamento direto das operações brasileiras da JBS tenha sido especificamente mais limitado no período analisado, o Barclays tem sido há muito tempo o maior financiador internacional da empresa em suas operações globais, continuando a apoiá-la mesmo quando outros bancos se distanciaram da controversa processadora de carne. 

As descobertas da Global Witness se somam a mais de uma década de alegações contra a JBS, cujos vínculos com a destruição ambiental e abusos dos direitos humanos por meio de suas cadeias de suprimentos estão bem documentados. 

A empresa recentemente removeu sua referência a uma “tolerância zero para… invasão de áreas protegidas, como terras indígenas ou áreas de conservação ambiental" em sua última solicitação para listar suas ações na Bolsa de Valores de Nova York.

A análise feita pela Profundo também examinou investimentos diretos e participações acionárias, indicando que instituições financeiras baseadas nos EUA embolsaram um total de US$ 660 milhões de investimentos da JBS globalmente. 

Os gigantes da gestão de ativos Vanguard, BlackRock, Fidelity Investments e Capital Group detiveram a maior parte disso, com Vanguard e BlackRock ganhando US$ 46 milhões, cada, com as operações da JBS.

Nenhuma dessas instituições financeiras baseadas nos EUA comentou sobre as alegações.  

Separadamente, a Global Witness reportou que BlackRock e Vanguard estão entre seis empresas que detêm mais de US$ 11 milhões em títulos ativos emitidos pela JBS e suas subsidiárias por meio de fundos classificados como "ambientais, sociais e de governança" (ESG).

Embora esses fundos excluam explicitamente empresas de combustíveis fósseis de seu portfólio, por exemplo, não excluem totalmente empresas ligadas ao desmatamento em seu processo de triagem.

A Global Witness contatou todas as instituições financeiras mencionadas neste relatório. Os trechos relevantes das respostas recebidas estão disponíveis aqui.

Mama Parakanã disse à Global Witness: “Quero enviar uma mensagem aos bancos porque sofremos grandes perdas. Foi um grande investimento. Às vezes, eles nem sabiam que era terra indígena. Então, estou dizendo a eles como eles são culpados. A carne que veio daqui, toda a nossa terra aqui, e carne, tudo ilegal.”

Invasores permanecem

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Koxawewoxa Parakanã, vice-presidente da Associação Indígena Tato’a e liderança Parakanã no combate às invasões da Apyterewa. Cícero Pedrosa Neto / Global Witness

Os homens brancos estão vendendo carne para o mundo inteiro, mas é a nossa terra que eles estão destruindo - Koxawewoxa Parakanã, vice-president of Tato’a Indigenous Association and a Parakanã leader

Apesar da afirmação do governo brasileiro de que as desocupações foram concluídas em outubro do ano passado, invasores não indígenas permanecem no território Apyterewa, informaram membros da comunidade à Global Witness.

“Os homens brancos estão vendendo carne para o mundo inteiro, mas é a nossa terra que eles estão destruindo. Queremos que eles devolvam o dinheiro que ganharam”, disse Koxawewoxa Parakanã, vice-presidente da Associação Indígena Tato’a e líder Parakanã.

Os riscos contínuos na cadeia de suprimentos

A presença contínua de invasores levanta questões sobre como a carne de Apyterewa pode ainda entrar nas cadeias de suprimentos de grandes processadores de carne hoje, apesar de suas alegações de práticas sustentáveis.

Esse risco destaca a necessidade de financiadores, como Barclays, BlackRock e outros, garantirem que seus investimentos não contribuam para desmatamento ou invasões de terras, aponta Reid, da Global Witness.   

Nesse contexto, ela acrescentou que os governos também precisam agir e garantir que os bancos sejam obrigados a realizar verificações antes de financiar empresas que operam em setores que sabemos estar frequentemente conectados a violações de direitos humanos, grilagem de terras e desmatamento.

“O setor financeiro não tem desculpa para fechar os olhos para seu papel no financiamento de empresas que promovem o desmatamento.”

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